quarta-feira, 24 de setembro de 2014

O Segredo do Segredo

A roupa do rei foi deposta
Cai a casa, ergue-se o parlamento desnudo
A moça veste o que queria despir de costas
O moço tem vergonha do que disse ser graúdo
E a mente da gente toda cansada agora tosta

A casa do parlamento tosta
Cai, do rei, vergonha do que disse ser desnudo
A moça agora toda cansada da mente deposta
E a gente ergue-se, veste a roupa de costas
Foi o que queria despir o moço graúdo

A moça ergue-se de costas
Cai do moço a roupa, a vergonha foi deposta
A casa do rei, o parlamento, a gente tosta
E a mente toda veste o que queria graúdo
Desnudo, a despir, tem do que disse ser cansada agora

A linguagem, por praticidade toda,
Não guarda em si uma só verdade
Mas, ao que se quis ver,
Ao que se possa ler.

Mas, por verdade, a linguagem ao que se quis ler
Não guarda em si ao que se possa ver toda
Uma só praticidade.

A praticidade por toda a linguagem,
Guarda em si uma só verdade,
Não ao que se possa ver
Mas ao se queira ler.


(Arthur Valente)

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Dos Desabafos

Não ligava muito ao fato
De que durmo como pedra e,
Como pedra, não sonho quando durmo
Porque antes sonhava acordado
Mesmo e apesar do mundo medonho
Que em meu entorno se põe exclamado
E mesmo e apesar do céu acinzentado
Que encobre o sol pacato
Durante o período diurno

Mas ultimamente parece que me empedrei por completo
Tanto que até faço uso de palavra nova e recém-inventada
Porque me falta vocábulo pra conceber onde, como e quando, neste trajeto
Aconteceu de minha sede de sonhar ter sido soterrada
E nem ao menos eu poder saber se encoberta foi pelo concreto

Acho que não.

Acho que talvez deva mudar de ramo, sair da arte
Viver de objetivos plausíveis, de conta no banco
De mentiras bem contadas, de cegueira auto-imposta
Pra nadar num rio de bosta
Achando que é isso mesmo, sei lá,
Que faz parte.

Mas não consigo..

Reza a lenda, diz o poeta, o profeta, tanto faz
Que quando se dá um passo a frente, o único problema
É que não se pode voltar mais atrás
E ai se vive o dilema que fica ali posto
De não saber se é melhor viver ignorante e abraçar o sistema
Ou saber que existe, ter a consciência como lema
E morrer de desgosto.

Mas, veja, mundo feroz, hostil e doente
Que nem todo o mundo é gente, quando vista de cima
Que nem todo o mundo pode escolher ignorar teu discurso prepotente
A qual fazes e desfazes, cria prédios, cria cidades, quebra o clima,
Pra deixar a ti mesmo, ó grande entidade,
Sempre forte e potente.

Dane-se! Quer saber?! Se até os sonhos me roubastes,
Vou viver de esperança, de inspiração, de resistência e conhecimento
Porque sei que esses quatro estandartes
Não importa o tempo, o espaço, nem o momento
Só podes tomar de mim se, enfim,
Me matares.

E digo já que não tenho mais medo da demência
Da repressão, do tormento nem da tua tão amada e tentadora ganância
Tenho medo é de ter medo da tua face e, numa temerosa incoerência,
Ver em ti alguma segurança.

Morro de fome ou do que tu quiseres me matar
Mas morro de consciência tranquila
E te garanto, ó santo patriarca da família
Que antes do fim ainda volto a sonhar.


(Arthur Valente)

sábado, 6 de setembro de 2014

Dos Testamentos

Começo este relato-confidência
Anunciando de forma clara em tom de verdade
Que espero ter da vida ainda muitas reticências
Mas que sei que o ponto final fica à cargo da casualidade

Queria dizer que, apesar da pouca idade,
Carrego na memória e no presente já certa vivência
E digo tal coisa com tanta propriedade
Porque já tanto passei desespero, quanto exalei felicidade
E que mesmo aglomerando tantas e tantas presenças
Explodi mais de uma vez de saudade

Queria aproveitar o momento de inspiração
Pra versar sobre o que a mim faria sentido
De acordo com o tudo que sou e tenho vivido
Caso meu espírito perdesse o vestido
Ao qual nomeio como corpo, ou projeção

Ao invés de choros, velas e nostalgia
Gostaria eu que meu próprio velório fosse celebração
Que, regado à célebre batucada provinda da Bahia,
Todos os presentes, juntos, entoassem coros até o nascer do dia
E que enchessem-se de cachaça à revelia
E um feijão preto bem feito pra fim de sustentação
Dando a meu pai Ogun, mestre da simpatia e da rebelião
Uma noite que, ao invés de silenciosa e fria,
Fosse quente, de folia e de célebre oração

Minha consciência e meu espírito já descolados
Frente a uma visão como a que projeto
Poderiam, então, amansados
Fazerem-se livres por completo
E sem a menor preocupação

No fim, gostaria de ser cremado a céu aberto
E, caso sobrassem restos de minha ex-materialidade em decomposição,
Que fossem enterrados sob a selva de concreto
Da qual fui filho tanto desafeto quanto dotado de paixão

No mais, antes de tudo, que sejam dadas as partes de mim que servirem
Para que outros, ou outras, possam persistir
No ato de curtirem
Um pouco mais do que essa vida possa lhes servir.

E já digo, de antemão, que sou e espero ainda poder
Ser grato pelo tudo o que por aqui verei e vi
E principalmente pelos, e pelas, que por aqui
Tive o privilégio de conhecer.

Asé.
Até quando puder, aonde e a quem.
Amém.


(Arthur Valente)

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Oração à Bonança

Deságua o mundo em nosso entorno
Jogados estamos sem refúgio, nem resguardo
Olho-te o rosto molhado
E penso que a chuva não é mais que adorno
Frente ao nosso choro desenfreado

E era claro, que em meio ao breu
Haveríamos, finalmente, de desnudar
Aquilo que entendemos, individualmente, como eu
Pra que o nós tomasse lugar

Depois que passara a tormenta
Finalmente pude confiar em teus dizeres
E finalmente tu me compreenderas os atos
E percebemos, penso, que apesar da forma violenta
O conteúdo é, no centro, amor do mais fino trato
E na margem a explosão mais sincera dos prazeres

Em teus olhos de verde-água doce
Cai de cabeça e fui nadar dentro de ti
Afoguei-me em tua história, fosse ela qual fosse,
E notei que em teu corpo, minha alma fundi

És a consciência viva de um deus africano
Mas a tua projeção carrega um traço germânico
E vejo que mesmo em teus movimentos mais mecânicos
Há um espaço de vida oceânico
No qual nadaria a perder de vista mais de um ano

Encanta-me a tua fala concisa e empoderada
Conforta-me o teu jeito meigo de tratar quem amas
Fortifica-me a tua existência gigante e inflamada
E me excita teu saber em agir na cama

Cada parte tua é Sol do mais brilhante
Cada toque é explosão atômica de gozo
E mesmo quando expurgas o que é, a ti, mais angustiante
Vejo em ti o retrato vivo de um ser tão maravilhoso
Como jamais havia visto antes

Espero que daquela noite de tempestade
Venham frutos firmes e adocicados como a tua fala
Pra que o choro, numa próxima, seja só de saudade
E pra que sejamos, um do outro, amuleto e mandala
Deixando para o quarto, cozinha, chuveiro e sala
E não mais para uma quase-vala
Todo o, não mais doloroso, mas prazeroso alarde.



(Arthur Valente)