sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Dos Vômitos

O amor é como a morte
Não dá aviso prévio, nem alarde quando vai chegar
Entra sem bater, sem pudor
Traz consigo, juntos, o alívio e a dor
E oscila sensorialmente entre azar e sorte

Quando a morte se apresenta simbólica
Quando não é do físico, mas do emocional
Por exemplo
Mesmo com toda a carga melancólica
Não concebe o quão imensa e visceral
É a cólica
Causada pela dor de amor real
Que nos infla e preenche o corpo carnal
E que se assenta como a uma catedral
Ou um templo

Entre a morte e o amor
Há quem diga que a primeira é mais forte
Ao comparar o resultado de ambas quando abertos os cortes
Mas pensemos, pois, que a primeira, dependendo, vira suporte
Já o segundo, não sei se por rancor ou por esporte
Pode corroer a alma do portador

E mais que tudo isso
A morte, não sei se fim ou se início
Sabe que amar está além de seu próprio poder

Já o amor tão desejado
Se fizer do amante um maltratado
Acaba matando - simbólica ou literalmente - mesmo sem querer


(Arthur Valente)

domingo, 20 de julho de 2014

Ponto Forte

Teus olhos furtivos me roubam a concentração
E me curam a afobação mesmo nos momentos mais agressivos
Deixando-me sempre a condição ininteligível
Que és em mim a própria substância da paixão

Sinto tua falta todos os dias
Falta da arte que és só por existir
Me apertas o peito, sem saber, nas noites mais frias
Contagia-me de poesia que, de ti, é elixir
E transborda lirismo sem usar de uma só caligrafia

Como se não bastasse, refletiu-me em verso
A partir de tua vista tão cautelosa
Ao exalar de tua pena o cheiro da mais doce rosa
Chamou-me de azul neste teu vasto universo
E agora, de modo inverso, devolvo-lhe a menção honrosa
Mas com a certeza que em minha vida teu ingresso
Não caberia na mais sublime prosa

Sinto apreço pelas tuas sutilezas escrachadas
Pelas tuas incertezas ponderadas
E pela tua encantada leveza

Atrai-me tua essência misteriosa
Tua paciência fervorosa
E tua caridosa inteligência

Coloco-me à tua disposição
Mais por necessidade que por opção
Mas quero que fiques à vontade
Pra reconhecer em tua sensibilidade
O quanto é válida essa nossa relação
E já digo, de antemão,
Que se queres saber a verdade
É que não há só uma tua parte
Que não seja inspiração.


(Arthur Valente)

terça-feira, 15 de julho de 2014

Dos Diálogos

Nada denuncia mais do que o olhar
Basta que as janelas se cruzem
Pra que as almas saltem de seu lugar
E se alcancem mutuamente num diálogo silencioso
Mas tão honesto que faz inveja tanto à língua
Quanto ao ato de falar

É pela curva dos olhos que fica mais perceptível
A forma com a qual o ser
Torna-se tudo o que tem capacidade
Para se tornar

A íris age como agente sensível
Mostrando o até então latente querer
Ao entregar sem resistência a verdade
Que de tudo fizera pra não se mostrar

Olhei o teu olhar no meu grudado
E não precisastes mais usar, da fala, um só recurso
Pois o que com ele me foi falado
Não alcançaria dizer nem o mais poético discurso

E falamos tantas vezes sem dizermos quase nada
Por horas escrevemos as mais sublimes confissões
Que saíam como expressivas projeções
Criadas por nossas almas apaixonadas
E exportamos todas as emoções
Sem que precisássemos fazer uso de qualquer linguística ensaiada

Entre nossas janelas agora se criou um elo
Tão fortificado e belo que não há no mundo
Corte suficientemente profundo
Que destrua o ligamento construído pelos gestos mais singelos

Não temos o que temer
Tampouco são nossas inseguranças carregadas de sentido
Confio que seremos, a nós, o melhor que pudermos ser
E que mesmo se um dia ficar o coração partido
Ainda assim encontraremos neste vínculo tão bem construído
A razão mais clara pra continuarmos a viver.


(Arthur Valente)

terça-feira, 8 de julho de 2014

Contato e Improvisação

Agradecimentos à Larissa Neves - poetiza, musicista, escritora, atriz, roteirista, boniteza e futura historiadora - que me abriu os olhos pra essa vertente artística incrível. Gratidão :)

Corpos balançam em dança
São, primeiro, caricaturas de um elemento
Que mais parece entidade
São o próprio vento
Que num momento é tempestade
E em outro parece que amansa

Depois são amostra de rara leveza
E há algo sutil em seus jogos de olhar
Comunicam-se com demasiada destreza
E há certa ingenuidade latente que atiça
Pra depois ser malícia encoberta em véu sereno

E eis que paira sobre o ar
Como se fossem juntos uma só natureza
Uma atmosfera de beleza
Entre os doces venenos e as brutas carícias
Que não há quem não queira se entregar
À delícia
De sentir-se pleno ou plena
E de marcar a cena
Para si e para sempre
Em seu corpo terreno.


(Arthur Valente)

domingo, 29 de junho de 2014

Cárcere

Quando a alma se fecha em suas próprias amarguras
As palavras se aquietam, os gestos são brutos
O corpo grita em silêncio como se estivesse em luto
E o frio dá aos beijos antes molhados uma fúnebre secura

Os corpos parecem distantes, os olhares parecem carrascos
A poesia perde importância na hora que deveria mais importar
Os olhos secam de medo quando deveriam só desaguar
E o gosto morre de tédio pra dar lugar a todos os ascos

O céu acinzenta quando aberto
E parece espelho
Quando encoberto

O futuro antes sublime e incerto
Forma-se um pentelho
E ascende desafeto

Todo o desabafo soa como vitimista
Todo o altruísmo parece forçado
Todo o amor some sem deixar pista
E de amor fica o âmago esfomeado

O mundo parece não ter jeito
O peito parece trancafiado
Os conceitos gritam desenganados
Invalidados ficam todos os feitos

Perde-se a esperança entre mundos de juras
Mas se mantém viva como ao corpo cansado
A vida parece ter se dissipado
Mas é fase, é momento
Já já passa o tormento
Logo o presente vira passado
E alma se liberta de suas próprias amarguras.


(Arthur Valente)

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Merecimento

A festa agoniante
Se mantém pela mescla da demência
Com o tom cativante

Revela-se no semblante deste jovem
Itinerante
Que me freia o pensamento
Pra pedir um cigarro
Que sarro a sua embriaguez relutante
E sua dócil fala inocente
Por entre o sorriso banguelo farsante

Perdido na praça coberta de verde-amarelo
Cercada de bandeiras entediantes
Que tentam encobrir toda a carência
Causada pela violência
De nós, ignorantes
Parados como cães de audiência
Ao protagonizarmos presença
Babando a fome de frente
No espetáculo do narcisimo galopante
Marco da crueldade intensa

Que momento épico!
Bastou nada e fomos fisgados
E calados pelo mesmo anzol
Mas se até não negar hoje é doença
Dêem-me a sentença
Sou mais um histérico

Afinal, fora o mundo real
É só mais um dia de sol
E é só futebol. Não faz mal.
É só futebol.


(Arthur Valente)

domingo, 8 de junho de 2014

Dos segredos explícitos

A liberdade é de fato nossa própria substância,
Basta que lhe permitamos a ação
Basta que lhe confiemos a vivência
Que toda a experiência toma a forma de evolução
E a felicidade vira o alicerce de maior relevância
Da existência

A rebeldia ativa contra as barreiras
Que cercam os espaços preenchidos
Pela sociedade doente de narcisismos destrutivos
Pode não conseguir que cedam de primeira
Mas ao manter-se a martelar de modo incisivo
Ganha a força de uma escavadeira
E vai até a raiz do sistema invasivo
Deixando-lhe a não mais do que poeira
E dando ao corpo-alma agora livre
Motivo claro pra estar vivo

Se é o indivíduo um reflexo de seu mundo
É também o mundo o reflexo de sua identidade
Logo, com coragem pra descobrir-se sempre mais a fundo
Fortalece a mudança que quer ver na realidade
Pra cada atitude ofensiva contra a crueldade
Torna-se o normal cada vez mais moribundo
E o viver se concebe em diversidade

De nada adianta o sectarismo
Quando o fazemos, não só deixamos de aprender
Mas nos perdemos do idealismo
Não passando o discurso de mero achismo
Ao invés de o que por lógica deveria ser
A teorização de nosso empirismo

A libertação
É o ópio
De mais forte sensação

Mas ao invés de alienação
Tem o poder próprio
De ser, em si, elucidação.


(Arthur Valente)