domingo, 29 de junho de 2014

Cárcere

Quando a alma se fecha em suas próprias amarguras
As palavras se aquietam, os gestos são brutos
O corpo grita em silêncio como se estivesse em luto
E o frio dá aos beijos antes molhados uma fúnebre secura

Os corpos parecem distantes, os olhares parecem carrascos
A poesia perde importância na hora que deveria mais importar
Os olhos secam de medo quando deveriam só desaguar
E o gosto morre de tédio pra dar lugar a todos os ascos

O céu acinzenta quando aberto
E parece espelho
Quando encoberto

O futuro antes sublime e incerto
Forma-se um pentelho
E ascende desafeto

Todo o desabafo soa como vitimista
Todo o altruísmo parece forçado
Todo o amor some sem deixar pista
E de amor fica o âmago esfomeado

O mundo parece não ter jeito
O peito parece trancafiado
Os conceitos gritam desenganados
Invalidados ficam todos os feitos

Perde-se a esperança entre mundos de juras
Mas se mantém viva como ao corpo cansado
A vida parece ter se dissipado
Mas é fase, é momento
Já já passa o tormento
Logo o presente vira passado
E alma se liberta de suas próprias amarguras.


(Arthur Valente)

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Merecimento

A festa agoniante
Se mantém pela mescla da demência
Com o tom cativante

Revela-se no semblante deste jovem
Itinerante
Que me freia o pensamento
Pra pedir um cigarro
Que sarro a sua embriaguez relutante
E sua dócil fala inocente
Por entre o sorriso banguelo farsante

Perdido na praça coberta de verde-amarelo
Cercada de bandeiras entediantes
Que tentam encobrir toda a carência
Causada pela violência
De nós, ignorantes
Parados como cães de audiência
Ao protagonizarmos presença
Babando a fome de frente
No espetáculo do narcisimo galopante
Marco da crueldade intensa

Que momento épico!
Bastou nada e fomos fisgados
E calados pelo mesmo anzol
Mas se até não negar hoje é doença
Dêem-me a sentença
Sou mais um histérico

Afinal, fora o mundo real
É só mais um dia de sol
E é só futebol. Não faz mal.
É só futebol.


(Arthur Valente)

domingo, 8 de junho de 2014

Dos segredos explícitos

A liberdade é de fato nossa própria substância,
Basta que lhe permitamos a ação
Basta que lhe confiemos a vivência
Que toda a experiência toma a forma de evolução
E a felicidade vira o alicerce de maior relevância
Da existência

A rebeldia ativa contra as barreiras
Que cercam os espaços preenchidos
Pela sociedade doente de narcisismos destrutivos
Pode não conseguir que cedam de primeira
Mas ao manter-se a martelar de modo incisivo
Ganha a força de uma escavadeira
E vai até a raiz do sistema invasivo
Deixando-lhe a não mais do que poeira
E dando ao corpo-alma agora livre
Motivo claro pra estar vivo

Se é o indivíduo um reflexo de seu mundo
É também o mundo o reflexo de sua identidade
Logo, com coragem pra descobrir-se sempre mais a fundo
Fortalece a mudança que quer ver na realidade
Pra cada atitude ofensiva contra a crueldade
Torna-se o normal cada vez mais moribundo
E o viver se concebe em diversidade

De nada adianta o sectarismo
Quando o fazemos, não só deixamos de aprender
Mas nos perdemos do idealismo
Não passando o discurso de mero achismo
Ao invés de o que por lógica deveria ser
A teorização de nosso empirismo

A libertação
É o ópio
De mais forte sensação

Mas ao invés de alienação
Tem o poder próprio
De ser, em si, elucidação.


(Arthur Valente)

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Sua retórica já foi melhor

Não consigo mais me expressar
Antes vomitava pesares inacabáveis como rotina
E agora os que me inflam tomam forma de toxinas
A corroer-me a força do caminhar

As palavras não vêm, não gritam, não nada
Não se formam mais em meus devaneios
Nem me auxiliam nos anseios
Que como pedras meu corcundam a alma pesada

Não sei explicar, tampouco convencer
Mal consigo acreditar no que penso ser o certo
Tampouco trazer a um âmbito mais concreto
O tudo que me contorce a lógica pra desenvolver

Não sei mais poetar, nem contar
Não sei mais brincar de eu-lírico
E mal consigo extrair do empírico
Toda a inspiração que me levava a versar

Vão-se os versos, fica a tristeza
Vai-se a beleza, fica a sinceridade
Vai-se a verdade, fica a incerteza
E vai a correnteza a me arrastar pela cidade

Fica a cidade, vai-se a doçura
Fica a frieza, vai-se a paixão
Foge o tesão de fazer-se de cura
Fica a loucura da introversão.

Um dia eu volto pra poesia
Quando e se reencontrá-la por ai
Se nada é como um dia após o outro dia
E se a partir do nada é que tudo se cria
Que eu seja, então, recriado pelo o que ainda não vivi

E que pra mim a poesia volte, um dia
Melhor ainda do que era antes de partir
Pra que eu seja reparido à luz da filosofia
Que tenha a alegria como base de existir

Apesar de, com certa franqueza,
Saber que se não houver tristeza
Não há como haver sentido no ato de sorrir.


(Arthur Valente)