domingo, 16 de novembro de 2014

Homenagem aos Anjos Caídos

Lá do alto da torre de mármore camuflada em concreto
Vivem os anjos da sapiência a debaterem a vida sofrida
Dos povos ainda afogados no lodo terreno
E fazem uso da língua que lhes é tão distinta e rebuscada
Para afirmar que tudo querem limpo
Sem nem ao menos descerem as escadas
E quando vão à terra contemplar suas feridas
Só o fazem sobrevoando com suas asas plumosas bem erguidas
Sentindo-se com aos antigos deuses do Olimpo
E gritando seu ininteligível dialeto
Que são os mais pobres, enquanto sujeitos, a única saída
Mas ainda assim se esgoelam como se comandassem objetos
E tampouco se dão ao trabalho de usar da linguagem comum à vida
Para se fazerem entender aos que dizem guardar afeto.

Depois voltam à morada do esclarecimento
E vão aos pares dizer do que ocorre lá pelo mundo afora
Um ou outro, ás vezes, faz que chora
Outro ou um ri de nervoso
E é geral o sentimento de impotência para com o sofrimento.

"Mas o que será que fazemos de errado? Por que não nos dão atenção?"
O mesmo que questiona, parece não ter notado
Que aqueles e a aquelas com os quais queria estabelecer diálogo
Estavam mais preocupados e nadar atrás de sustento
Para suas irmãs e irmãos.

E, então, no meio de uma dessas assembléias divinas
Onde só se fala a língua dos anjos e, por vezes, se repetem as falas
Sem conseguirem - por incrível que pareça - se entenderem
Alguém se levanta e sugere ao quórum:
"E se abríssemos mão das asas e fôssemos nadando como o resto?"
Silêncio na plenária e entre os corpos a tensão parece que exala
Até que um dos sábios à palavra se inclina:
"Essa proposta é um manifesto que tem por intenção fazer os anjos retrocederem!
Não devemos abrir mão de nossa verdade alcalina!
Pelo contrário, é daqui que damos a chance dos pobres ascenderem!"
Daí que se levanta mais uma vez o primeiro anjo para a réplica ao fórum:
"Mas como podemos lhes ensinar a voar, se nunca vamos ao chão?
Aposto, pois, que aqueles que dizemos querermos salvar dessa vida cretina
Quando nos olham, só sentem o sentimento mais indigesto!"
"Mas como podem nos olhar com tamanha repulsão
Se aqui pensamos para que se livrem de suas sinas?
Somos como eles e elas, mas agora aprendemos, por determinação,
A pensar com a razão, a voar para fim de observação
E a falar a língua mais bela que a todos fascina!
E para que todos possam usufruir dessas possibilidades o nosso constante protesto.
E além de tudo, a sua proposta me parece um tanto quanto assassina!"
Quando o absurdo ascendeu e as palmas vieram contínuas
A esperança de súbito desfaleceu e foi chorar na colina.

Talvez os anjos precisem ter as asas arrancadas pela dura repressão
E que sejam sugados pelo lodo mais funesto
Pra se lembrarem que só se aprende a voar de baixo para cima.

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