quarta-feira, 4 de junho de 2014

Sua retórica já foi melhor

Não consigo mais me expressar
Antes vomitava pesares inacabáveis como rotina
E agora os que me inflam tomam forma de toxinas
A corroer-me a força do caminhar

As palavras não vêm, não gritam, não nada
Não se formam mais em meus devaneios
Nem me auxiliam nos anseios
Que como pedras meu corcundam a alma pesada

Não sei explicar, tampouco convencer
Mal consigo acreditar no que penso ser o certo
Tampouco trazer a um âmbito mais concreto
O tudo que me contorce a lógica pra desenvolver

Não sei mais poetar, nem contar
Não sei mais brincar de eu-lírico
E mal consigo extrair do empírico
Toda a inspiração que me levava a versar

Vão-se os versos, fica a tristeza
Vai-se a beleza, fica a sinceridade
Vai-se a verdade, fica a incerteza
E vai a correnteza a me arrastar pela cidade

Fica a cidade, vai-se a doçura
Fica a frieza, vai-se a paixão
Foge o tesão de fazer-se de cura
Fica a loucura da introversão.

Um dia eu volto pra poesia
Quando e se reencontrá-la por ai
Se nada é como um dia após o outro dia
E se a partir do nada é que tudo se cria
Que eu seja, então, recriado pelo o que ainda não vivi

E que pra mim a poesia volte, um dia
Melhor ainda do que era antes de partir
Pra que eu seja reparido à luz da filosofia
Que tenha a alegria como base de existir

Apesar de, com certa franqueza,
Saber que se não houver tristeza
Não há como haver sentido no ato de sorrir.


(Arthur Valente)

sábado, 24 de maio de 2014

Mas a vida é real e de viés

Queria poder viver em um mundo
Onde a sede de liberdade
Não sucumbisse de forma tão trágica
Às desesperanças e fracassos
Que a história documenta

Queria ver se erguer a tormenta
Que levaria de forma mágica
Toda a fragilidade
E os medos mais profundos
Cedendo à coragem seus espaços

Queria notar o tempo num novo compasso
Onde o quando, se justo, seria logo
E quando o onde fosse indiferente
Pois, a casa seria em qualquer chão que a comportasse
E a fraternidade seria a substância chave da política

Queria ver nutrida a rebeldia por agora raquítica
Nadar numa corrente de utopias que, por pressa, me afogo
Escrachar o conformismo consciente
Ver os preconceitos mortos e em pedaços
Cedendo o posto à insurgência de classe

Queria tudo pra agora
E é pela pressa que me sinto impotente
Afinal, o tempo do mundo é uma calma senhora
E o tempo da vida é uma explosão adolescente

Tenhamos calma e compaixão com a tal idosa
Pra ajudá-la a caminhar sob nossa supervisão
Sempre valorosa
Mas deixemos de lado a arrogância
Pra não sermos devorados por nosso alcance escasso
Ao assumirmos a ignorância
De querer levá-la nos braços.


(Arthur Valente)



quarta-feira, 21 de maio de 2014

Prólogo

Vai começar a festa!
Vem a primavera, com toda a potência que lhe cabe,
Gritar aos quatro cantos que chega a hora da insurgência
Daqueles que antes só eram convocados a encherem os balões
Dos patrões que, em troca,
Ofereciam-lhes pouco menos que a subsistência
Afirmando que era justo atribuir à miséria
O sentido matéria de sua existência

Eis que surgem dos confins da desesperança
Crianças, ainda pouco experientes,
Mas com o coração efervescente pela mudança
Tão esperada e comemorada
Que ainda se mostra latente, apesar de escrachada
E rebuscada, apesar de coerente

Finalmente o espírito de luta
Mescla-se ao senso de justiça comunitário
E mostra-se pelo esclarecimento do pensamento ordinário
Como a um diamante ainda em forma bruta
Que ganhará a função de relicário
Na medida que não há nada mais sacro
Do que a busca por deixar um cruel sistema em cacos
Para erguer-se outro mais igualitário

A consciência se desdobra em reflexos de genialidade incontestáveis
E agora têm, os poderosos, de escutar a verdade
Que lhes chicoteia tal qual um açoite
Que os povos não lhes servirão mais de bobos da corte
E que os defensores implacáveis da escuridão
Serão passados tanto quanto sua era de noite

Descobrimos, passo a passo, que somos a força motriz
A segurar de pé
Nossos próprios carrascos de má-fé

É primavera, aproveitemos o asé
Pra cortarmos de vez a crueldade pelo pé
E o mal capital pela raiz.

Deixo a visão aos ainda apáticos
E descrentes
Que esse baile plutocrático
Se tomado pela brilhante ralé por agora
Desobediente
Pode até ter final feliz.

Pois que se transforme a flora
E que se aflore a gente.



(Arthur Valente)

terça-feira, 20 de maio de 2014

Religare

De que vale a liberdade de poder dizer
Que vivo preso
À realidade que me foi ensinada a crer
Por senso
Como sendo a verdade inescapável de se viver?
Que peso...
Desde que comecei a de fato aprender
O quão denso se faz o ser
Ao estar enjaulado à máquina mortífera
E pouquíssimo frutífera
À qual, por vaidade, nomeiam como o viver

Morro todo dia ao não ver saída
Pra esta tão estranha
E contraditória
Forma de vida.

Corro pra encontrar a esperança quase perdida
E a invoco de minhas entranhas
Exaltando-a em minha oratória
Que torna-se morna por tanto já ter sido repetida

Abstraio os torpes valores que a mim são passados
E, desenganado, renovo os critérios
Continuamente
Do sagrado mistério
Que reina sob o barulho dos tambores
Tocados
Que ascende por entre os amores
Trocados
Que adoça a delícia dos sabores
Mesclados
E que ilumina a alma dos esperançados
Deixando-as mais brilhantes
Do que o brilho combinado de todos os cobiçados
Minérios


(Arthur  Valente)

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Choque de Realidade

Prepare seu coração, pessoa
Sem metáforas, nem lirismo
Prepare-se que o mundo ai fora é um barco
A ir na contramão da terra nova
Contemplando o conformismo piegas
Deixando a esperança em cacos
E derrubando os sonhos pela proa

Prepara teu ouvido, mente pensante
Que ainda há de ouvir muitos discursos intolerantes
Apesar de refinados
E bem letrados, apesar de pedantes

Prepara tua alma livre, pois logo enxergará a tua prisão
E perceberá que o Não é vício cultural
Assim como fazer o mal a teu semelhante
E que não passarás de um resquício mortal
Por mais que tentes te fazer gigante
Correndo o risco ainda de terminar como vilão
Tanto para o lado que te agrada o sermão
Quanto do outro que tu julgas ignorante

Estamos todos no inferno, disse Dante
E devo-lhes confessar que aqui faz frio
Que é sujo o rio, que é feio o semblante
Tanto quanto vazio

E que é melhor que te preenchas logo de potência
Pra largar de vez aquilo que chamam de sanidade
E entregar-se à demência saudável
Que mora na sensibilidade

Criança, vê bem
Ou enche-te de esperança
Pra manter-se zen
Ou será para sempre apunhalada
Pela lança do desdém.


(Arthur Valente)

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Dos Devaneios

Ai, ai... Bom seria se fossem as trocas comerciais
Como são, num aspecto metafísico,
As trocas emocionais intrínsecas à natureza mais humana
Assim talvez não fossem as trocas transcendentais
Equiparadas às trocas comerciais mundanas
Sendo, portanto, rebaixadas à rotina
E deflagrando inacabáveis cismas
Desde muito tempo atrás
Fazendo-se contrariar pela consciência
Sua essência natural que é tão cigana

Puseram os olhos de ressaca em pagãos altares
E agora andam ressecados pela abstinência
Que brota na ausência
De novos olhares. De novas carências.
De novas experiências que lhes poderiam ser tão complementares
À vivência.

Invejam D. Quixote sem saber que o fazem
E andam no pinote tal qual o velho cavalo empático
Que andava ao sentir o estalar do chicote
Vindo do herói dos lunáticos.

Às vezes se veem como Sanchos
Mas não passam de pança,
Pois lhe falta esperança tanto quanto lhes falta coragem
Pra seguirem viagem
Tendo numa mão a lança da insurreição
E na outra, um escudo de proteção fundido na confiança
Em querer emancipação.

Ai, ai.. Bom seria se ao invés de exaustão
Nos preenchêssemos de amor
E de compaixão
Ao invés da paixão depressiva por ser senhor

Melhor ainda seria se essa fala
Não fosse tão vazia ao ser dita e repetida todo o dia
Pela mesma boca prevenida que ao querer falar,
Cala
E que, ao invés de malas
Carregássemos asas
E voássemos à luz da liberdade
Que lembraria a imensidão do mar, contrastando a neblina
Da cidade
E que ao pousarmos, os que já no chão estivessem
Não precisassem, por convenção, fazer sala
Nem uma atuação de anfitrião rasa
Pois estaríamos todos em casa.

Que bom seria..


(Arthur  Valente)

segunda-feira, 10 de março de 2014

Insônia

Luz baixa de manhã tímida
Que já viera, mas ainda não chegara de fato
E amolece o tato ao vento que sopra
Contra o rosto insone e cansado de desidratar
Em saudade

Queima a alma pouco sã de sua própria demência
Mas não faz alarde a aparência
Que faz da cama seu divã

E forma-se a efervescência
Que toma a filosofia por ciência
E tem por essência servir à consciência
Como vilã

Faz tanto tempo que parece que foi ontem
E o que foi ontem nem lembrava mais de ter sido
Até que o reencontre em outro sono perdido
E que os sentidos se aprontem
Pois não me caberão para serem engolidos

A luz reflete sobre o quadro torto
E no outro mais bem colocado
E ambos parados
Me olham a vê-los com o olhar morto
E deslocado
Como quem olha um barco a zarpar do porto

E vou-me embora pelos quebrados
Da mente
E penso em gente do passado
E do presente
Ficando doente de tão elucidado
E curado de ser prepotente
Pelo repente disritmado
Que são os caminhos curvados
Repletos de paus tortos e desvirtuados
Do senso pré-estipulado
Que é imposto à vivência

Às vezes a saudade dá carência, é verdade
Mas ensina, quase sempre, que a vaidade não é atadura
E que a realidade parece sempre menos dura
Quando prevalece a paciência.



(Arthur Valente)